I Conferência Estadual da Saúde abre espaço para um diálogo amplo e plural sobre Direito e saúde
03/12/2020 15:57h

A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1946, definiu saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas como a ausência de doença ou enfermidade. Esse caráter transdisciplinar ficou ainda mais evidente em 2020 com as consequências do avanço da pandemia da Covid-19. Com base nesse contexto, a Comissão Especial da Saúde da OAB/RS (CES) realizou a I Conferência Estadual da Saúde Online. O evento ocorreu na manhã dos dias 30/11, 01 e 02/12 e contou com a presença de profissionais do Direito, como também de outras áreas que contribuíram com os diálogos em torno de três temáticas: Contencioso em Saúde; Felicidade, Ciência e Espiritualidade; e Compliance em Saúde.
A secretária-geral adjunta da OAB/RS, Fabiana da Cunha Barth, participou da abertura no dia 30/11 e, no decorrer da sua fala, disse que a pandemia trouxe uma nova roupagem ao Direito da saúde; “A judicialização da saúde distorce ainda mais esse sistema que deveria ser universal, e não segmentado e desigual, pois há quem sequer consegue acesso pleno à justiça. Nós temos muito a avançar em termos de iniquidade. Aprecio o mundo que se pauta pela ciência, então, penso que esse evento contribui para que tenhamos mais subsídios para essas discussões tão relevantes em relação ao Direito da saúde.”
A presidente da CES da OAB/RS, Mariana Diefenthäler, afirmou que, embora todos estejam em um momento de instabilidade, a comissão prioriza o contínuo diálogo e está atenta às mudanças e demandas da sociedade, que compreendem à advocacia. “Mais do que nunca, nós pudemos perceber a importância da interlocução entre várias visões de mundo, e a nossa comissão, mais uma vez, percebeu que as questões sanitárias dos municípios que integram o nosso estado são diferentes. Além disso, desde que foi declarada a crise sanitária, houve uma insegurança jurídica muito grande diante da inconsistência das decisões. A CES está atenta a todo esse contexto social, e estamos a serviço dessa sociedade.”
Contencioso em Saúde
O contencioso em saúde está atrelado à busca por jurisdição quando uma política pública de saúde ou um contrato de plano de saúde não é cumprido. Essa foi a discussão central do primeiro dia da Conferência. Entre outros convidados para a abertura do painel, esteve presente a presidente da Comissão de Direito Médico da OAB/GO, Caroline Santos. Em uma breve explanação, ela enfatizou a importância dos direitos de consentimento, autonomia do paciente e da desjudicialização da saúde. “No Brasil há um projeto de lei, ainda em tramitação, para garantir que o paciente tenha informações seguras sobre as questões que envolvem a saúde dele, tanto pelo médico, quanto pela indústria farmacêutica. A relação entre médico e paciente deve ser de confiança, baseada na ética, na moralidade; uma relação de direitos e obrigações. Nenhum de nós, advogados, deve ficar alimentando que o paciente tenha raiva de seu médico. Pelo contrário”, afirmou.
O painel teve como debatedores convidados: Lucas Lazarretti, integrante da CES; Isadora Dalmolin, presidente da CSDM de Santa Maria; e Juliana Schutz Bonamente, advogada representante da subseção de Passo Fundo. Os impactos da pandemia na esfera da saúde suplementar foi um dos recortes trazidos pelos painelistas, como por exemplo, a inclusão da cobertura obrigatória do teste para Covid-19, a extensão do prazo para atendimento dos beneficiários, a suspensão de exames eletivos, entre outras mudanças. “Diante disso, o que acontece agora é uma avalanche de ações desses procedimentos”, pontuou Lazarretti.
Juliana apresentou dados que mostram que, entre 2014 e 2017, mais de três milhões de brasileiros deixaram de ter um plano de saúde e, mesmo diante desse cenário, as solicitações de procedimentos aumentaram. Além disso, 30% dos exames realizados por pacientes não são consultados, inclusive os que podem ser acessados pela internet. “É preciso um uso consciente do plano de saúde. Cada vez que a gente ingressa com ações, seja no âmbito do SUS, seja no da saúde suplementar, isso acaba impactando economicamente outras questões, gerando um uso indevido da máquina do Judiciário pelo consumidor.”
Dalmolin trouxe uma reflexão sobre a incidência do uso do Código de Defesa do Consumidor (CDC) na relação médico-paciente e afirmou que esta não é a solução mais adequada: “Não tem porque ficarmos aplicando o CDC se é possível utilizar-se do código civil, código de ética, das normativas do Conselho Federal de Medicina (CFM) e da Lei do Ato Médico (12.842/2013). Tudo isso traz uma especificidade muito maior à relação médico-paciente, se comparado à aplicação do CDC com base em uma perspectiva literal de ‘consumidor e fornecedor’. Gramaticalmente, e considerando a vulnerabilidade e complexidade da questão, não é viável”, defendeu a advogada.
Felicidade, Ciência e Espiritualidade
Neste segundo dia de atividades, o painel tratou da interlocução entre ciência e espiritualidade, exaltando a importância do cuidado, não apenas da saúde física, mas também da saúde mental. A diretora da Escola Superior da Advocacia (ESA/RS), Rosângela Herzer dos Santos, esteve entre as convidadas para as explanações de abertura e, em sua fala, parabenizou a CES pela iniciativa de trazer o tema para o âmbito de discussões da advocacia: “Além de todos nós que trabalhamos nessa difícil missão, que é a de mediar, resolver e encontrar soluções para tantos conflitos para os quais nos são chamados, dificilmente alguém procura um advogado para dizer que está em paz. O cliente traz um mundo e coloca essa carga em cima de nós. Além do conhecimento que nos é exigido, nós também precisamos ter um equilíbrio físico e mental”, disse.
Os painelistas da manhã foram: Cláudia Pires, terapeuta especialista em Gestalt Terapia, expressão corporal e musicoterapia; Padmini Isoldi, artista visual, pós-graduada em Psicologia Transpessoal; Elton Oliveira, escritor, filósofo e instrutor em meditação; e Alice Brocardo Lima, advogada, facilitadora de prática restaurativa e consteladora familiar. Entre explanações e exercícios de meditação, a questão do autoconhecimento e das chamadas Práticas Integrativas e Complementares (PICs) foram os assuntos mais abordados durante o painel. “Uma das principais causas dos nossos problemas de saúde psicoemocionais (que geram os físicos), está na falta de contato consigo mesmo e, logo, vamos perdendo a percepção e consciência do nosso ser e ficando prisioneiros da nossa mente”, explicou a terapeuta.
Mas por que a mente é tão importante? De acordo com Elton Oliveira, a qualidade da experiência é determinada pela qualidade da mente, sendo este um princípio básico da prática da meditação. “Muitas vezes a gente se coloca em uma posição de quem tem que ter todas as respostas e soluções. Mas isso não é tão simples. Sempre que um advogado ou uma advogada estiver com o seu cliente, em uma situação de estresse e dificuldade, a orientação é a de que o profissional fique atento à sua respiração e respeite as suas limitações.”
A meditação faz parte de um conjunto chamado de Práticas Integrativas e Complementares (PICs). São recursos terapêuticos baseados em conhecimentos tradicionais que buscam promover a prevenção de doenças, e não apenas a sua cura. Em 2018, o SUS passou a disponibilizar 29 práticas à população, muitas delas já na atenção básica dos municípios, como, por exemplo: meditação, acupuntura, reike, constelação familiar, yoga, entre outras. “As PICs são estimuladas pela OMS para que, entre 2014 e 2023, os países instituam as políticas nacionais voltadas a essas práticas. No Brasil, isso existe desde 2006. As secretarias de saúde primeiro precisam oportunizar aos profissionais de saúde a possibilidade de trabalhar com uma das PICs. Se não houver profissionais capacitados para realizar essas práticas, deve-se buscar fora do sistema”, explicou Alice.
Compliance em Saúde
Compliance é o conjunto de disciplinas para fazer cumprir as normas legais e regulamentares nas políticas e nas diretrizes estabelecidas para o negócio e para as atividades da instituição ou empresa, bem como evitar, detectar e tratar qualquer desvio ou inconformidade que possa ocorrer. Em seu último dia, a Conferência Estadual da Saúde debateu algumas questões ligadas ao tema, como bioética, educação em compliance e os implicativos da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) na saúde.
Gabriela de Souza, advogada, professora e especialista em testamento vital, levantou questionamentos acerca da bioética, tecendo críticas às nomenclaturas expostas nas Diretivas Antecipadas da Resolução 1995/2012 do CFM. “O contexto de Diretiva Antecipada que está ali é o de testamento vital, isso é errôneo. Como vamos falar de bioética sem que os advogados, as advogadas e os profissionais da saúde entendam as nomenclaturas corretas? Existe uma dificuldade no Brasil em relação a outros países de aprofundar o debate sobre a morte. É necessária que haja uma educação sobre assunto.”
Suzana Damiani, integrante CSDM da subseção de Caxias do Sul, também participou do painel trazendo conceitos e questionamentos acerca do entendimento do compliance. “Quando se fala em ética, parece que se trata de um conceito universal, e eu entendo que sim, pois alguns princípios são fundamentais. Mas o que é o bem comum? Nós temos uma ética que é utilitarista. Logo, temos concepções muito diferentes, tanto de saúde, quanto de morte. Quando se fala em compliance, nós estamos nos referindo à conformidade com normas e princípios, mas isso também é mutável.”
Sob o aspecto da LGPD, está estabelecido que dado pessoal é qualquer informação relacionada a uma pessoa física identificada ou identificável. De acordo com Rafael Di Tommaso, integrante CSDM da subseção de Caxias do Sul e último painelista do dia, o dado pessoal sensível conversa diretamente com o Direito da saúde, compreendendo, também, questões religiosas, de dado genérico ou biométrico. “Existentes outros instrumentos jurídicos, como a Lei do Prontuário Eletrônico que define que o processo de digitalização de prontuário de paciente seja realizado de forma a assegurar a integridade, a autenticidade e a confidencialidade do documento digital. A LGPD fundamenta o respeito à privacidade e inviolabilidade da intimidade, honra e imagem que estão ligados diretamente à saúde.”
A íntegra dos três dias do evento já está disponível no canal da OAB/RS no YouTube. Não deixe de acessar e conferir os detalhes de cada painel
03/12/2020 15:57h